terça-feira, agosto 03, 2010

Nem tudo o que parece... é!


Crónica do Palhaço Catita
Uma noite no parque de diversões


Ela olhou para aquela enorme torre, cuja armação exterior mais parecia um «esgalha pessegueiros» gigante, e deu uns pulinhos infatilóides, enquanto me cutucava repetidamente no braço. Parecia uma arara. Não era uma arara bonita. Nem branca. Nem especialmente bonita. Muito menos colorida. E, já disse que era feia?... Era assim, tipo um cruzamento entre uma Ara rubrogenys e a traseira de uma Datsun 1200 depois de ter sido abalroada por um elefante em cio. Pois..., não olhem! Eu sei, não é bonito de se ver.

Virou-se para mim, enquanto os seus olhos continuavam teimosa e estupidamente focados naquela estrutura.

-- Gostava de andar naquilo. Deve dar cá uma sensação!... Fazer a adrenalina correr pelo corpo.

-- Bem... Sensação, sensação... tenho uma sugestão: Fazias amor comigo. Aí, havias de ver a "Ah! Drena! Lina"!!! ... a correr... rsrsrsrsrsrs

-- Que piada! Contigo?!... Fazer amor?... Pois, devia correr cá uma adrenalina.

Levei o indicador ao canto dos lábios e retorqui, com expressão interrogativa.

-- Mas, já te disse que fazíamos amor... à beira de um precipício?!....

Rematei, rodopiando o indicador, para terminar num movimento firme, apontando-o na direcção do solo, três passos ao nosso lado.

-- Não dava! O precipício ainda vá, mas tu... estragavas o cenário.

Disse-me, com uma leve beiça e ar de enjoadinha de primeira.

-- Não?!... Nem com um leão e uma cascavel... ali mesmo. Pertinho...!?

-- Quê??

-- Espera, espera.... E estava uma multidão a assistir que gritava «Come! Come! Come!». E eu virava-me para a multidão e dizia... «Mas, eu já estou a "comer"...» e eles respondiam em uníssono, «Não estamos a falar contigo, estamos a falar com o leão.»...

Ela abriu os olhos, a tentar imitar um carapau aterrorizado. Digo-vos, ficou mal. Muito aquém. Já vi sardinhas de lata fazerem uma imitação bem melhor... Mas, lá perguntei:

-- Estou a conseguir?... hã? Diz-me! Há adrenalina...ham... Não?!...

Abanou a cabeça negativamente. Segui-a com os olhos e dei por mim, inconsciente a fazer o mesmo embirrante movimento.

-- Ok! Já percebi. Não é preciso dizeres mais... na-di-nha.

-- Palhaço estúpido!

-- Olha. Para ti..., minha querida, é... Sr. Palhaço. Ok? Respeitinho, pelos cabelos brancos ou pelo nariz vermelho, já agora!

Saquei um punhado de moedas e passei-lhe para as mãos.

-- Toma e vai lá, que eu vou ali..., até à barraca das farturas, dar uns tirinhos.

-- À barraca das farturas dar uns tirinhos?!?

-- Ó moça..., vai! E põe-te nas alturas!!...

Rodei sobre mim e, caminhando na direcção do Zé das Farturas, disse entre dentes:

-- Pode ser que fiques mais próximo da iluminação....

-- Olha que eu ouvi!...

-- Ouviste?!?... - Gritei na sua direcção e sem dar chance a que respondesse virei-me e continuei - Não adianta de nada... Nunca vais perceber.

O Zé das Farturas estava bonacheirão.

-- Então? O que vai ser hoje, Sr. Palhaço?

-- Olha. Dá-me aí uma calibre vinte e uma caixa de balas amarelas... Fachâvor.

-- Uma imperial e um pires de tremoços a sair...

Virei-me e olhei a roda que subia pela torre, agora com as pernas penduradas de quem diz que procura emoções fortes. Apanhei um punhado de tremoços e preparava-me para açambarcar a imperial quando a energia no parque faltou. Tudo ficou às escuras por uns instantes. A música dos carrosseis parou, para dar lugar a uma gritaria... uma chinfrineira, eram - vá lá - guinchos, que vinha da direcção do «pessegueiro». Olhei em minha volta e reparei que o Zé das Farturas, homem assaz prevenido, tinha ligado o seu gerador.


-- Boa, Zé! Muito bem.

-- É, Palhaço, um homem prevenido vale por dois...

Apontei para a roda parada quase no topo da torre e indaguei.

-- E o que acontece àqueles desgraçados?

-- Esses vão ter de esperar. Por vezes demora horas até que a luz volte. E, por segurança, o sistema bloqueia as engrenagens quando há uma falta de energia...

-- Lindo!!...

Deixei escapar uma leve risada. Quase ao mesmo tempo, ao longe, ouvi um grito...

-- PALHAÇO!... TIRA-ME DAQUI!...

-- Isso agora... OLHA! PENSA QUE ESTÁS A BEIRA DO "TEU" PRECIPÍCIO!... AGORA, DESFRUTA!

E, encolhendo os ombros, deixei-a gritar.

-- PA-LHA-ÇOuuuuuuu!

E ia dar o primeiro gole na imperial, quando uma rapariga, na casa dos seus trinta "is"... abeirou-se e comentou:

-- Não sei como há gente que gosta de andar naquilo?!... causa enjoo. Dores de cabeça... e agora vão ficar todos com fobias por causa deste episódio.

Parei o movimento que levava a imperial já perto dos meus lábios, deixei cair o queixo e olhei-a com o misto de uma expressão entre a palermoide estupefacção e o deslumbramento inebriante. Que admirável análise, que poder de síntese... que cabelos negros, que lindos rosáceos lábios... que olhos penetrantes! Reparei que não era o único admirado com tal espécime. O Zé das farturas tinha-se encostado ao balcão e também ele parecia ter visto a mulher dos seus sonhos. Piscou-me o olho e fez um rápido aceno afirmativo com a cabeça.

-- Tem graça. Eu... também penso assim.
Disse-lhe, pousando rápido os tremoços e limpando desajeitamente a mão à minha roupa.

-- E haverá outra maneira de pensar?...

Ela sorrio para mim. Sorrio, e com aquele sorriso o meu mundo girou à sua volta. Tonto rodopiei sem sair do mesmo sítio. Até o estaminé do Zé se desfocou no meu campo de visão. Os meus olhos eram só para ela e só para ela o meu coração parou... e depois acelerou.

-- N-não... - Balbuciei

-- Há coisas bem melhores do que aquela falsa e artificial sensação de prazer.

Um silencioso, mas profundo e sentido «Uau!», formou-se na minha boca. Ela conclui.

-- E... eu, digo o que penso..., gosto desses lábios carnudos e desse narizinho vermelho, que dá tanta vontade de morder...

Cerrou os dentes e estremeceu a cabeça com um discreto «Grrrrrr». Na verdade, quase toda ela parecia uma gelatina gostosa saída de uma forma moldada pelos deuses... e eu, que até nem gosto dessas coisas gelatinosas. Assim que terminou, caminhou para trás da roulote. Mas antes de desaparecer, para lá da escuridão, ainda olhou para mim e inclinou a cabeça sobre o ombro direito olhando na minha direcção.

«Aquilo não era um tique». Pensei para mim. Não.... Definitivamente aquilo não era um tique.

-- Ó Zé. Aguenta aí o estaminé. Eu vou ali atrás da roulote ver se o teu gerador está a precisar de óleo...

-- Mas, o meu gerador está ópt..... Ahhhhhhh! Ok!... Vai com calma Palhaço... a luz ainda vai demorar algum tempo a voltar.

-- Luz, qual luz?!... A luz sigo eu... não viste aquela estrela?!?...

E também eu desapareci na escuridão, para trás da Roulote das Farturas.

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